O medo e o moralismo na retórica reacionária de Serra e Alquimim
João Quartim de Moraes *
Na campanha presidencial de 2002, José Serra logo constatou que a imagem de herdeiro de FHC seria o caminho certo da derrota. Para reverter sua má posição nas sondagens de intenção de voto, ele apelou para o argumento do medo: se Lula vencer, voltará a hiperinflação e com ela o caos econômico e a desordem social.
Convocada pela tucanagem para desempenhar na TV o papel de ave de mau agouro, Regina Duarte, a ex-namoradinha do Brasil, declamou com voz sombria e fisionomia carregada de apreensão: “-Tenho muito medo”. “-Tenho muito medo”, repetiam em coro outros comediantes da intoxicação mediática.É difícil para um candidato vinculado ao poder do dinheiro e aos privilégios sociais encontrar idéias-força que cativem o eleitorado. Afinal, as idéias fundamentais dos conservadores consistem em conservar a ordem social existente. Porém, toda moral pretende ultrapassar as condições e os interesses sociais que a geraram para assumir uma forma de universalidade. O moralismo é a versão hipócrita dessa pretensão. Na cultura política brasileira, sua expressão paradigmática foi o udenismo, do qual a tucanagem é filhote. Uma das modalidades desse moralismo que mais rendem votos é atacar os funcionários públicos e os políticos corruptos ou tidos como tais. Jânio Quadros permanece o grande modelo no ramo. Como ninguém é a favor, pelo menos em palavras, de fazer do serviço público um cabide de empregos, nem do saqueio dos cofres do Estado, o demagogo moralista opera na base de uma imagem eficiente: Jânio tornou-se o último presidente eleito antes do golpe de 1964 vendendo com talento de camelô –e pleno apoio da direita- a de “Homem da Vassoura”. O impacto da imagem de "caçador de marajás" com que se fantasiou o aventureiro de direita Fernando Collor de Melo valeu-lhe derrotar, sempre com pleno apoio da direita, na eleição de 1989, as forças políticas que mais tinham lutado para reconquistar o direito (exercido pela última vez em 1960) de escolher o presidente pelo sufrágio universal.
Nas duas eleições seguintes, FHC colheu todos os frutos de sua assumida (mas discutível) paternidade do real. Mas em 2002, a grande massa dos desempregados, sub-empregados e mal-pagos tinha chegado à amarga conclusão de que pouco servia uma moeda estável que chegava a seus bolsos em proporções miseráveis. Ser pai putativo ou filhote do real não bastava mais para ganhar a eleição. Daí a aposta de Serra no medo programado, que não lhe evitou a derrota. O povo não se deixou contaminar, mas os especuladores se impressionaram: como dizem os ventríloquos do capital financeiro, os “mercados ficaram muito nervosos”. O dólar, que em abril de 2002, antes do início da campanha eleitoral, valia cerca de 2,5 reais, foi subindo à medida que diminuía a possibilidade de vitória do candidato da direita, para atingir 3,8 reais. Malgrado esses golpes baixos, Lula obteve 53 milhões de votos no segundo turno, que lhe asseguraram 61,4% dos sufrágios expressos, contra 38,6% para seu adversário.
A difícil situação monetária e financeira, exacerbada pelos arautos do medo, fortaleceu, na formação e nos primeiros passos do governo Lula, a posição de Antonio Palocci e de Henrique Meireles, já decididos a defender a moeda por meio de altas taxas de juro. Muitos no entorno presidencial tinham presente à memória não somente a hiper-inflação dos anos 1980, mas também o papel decisivo do caos monetário na desestabilização do governo de Salvador Allende. Aceitaram postergar o prometido “espetáculo do crescimento” para “acalmarem os mercados”.
Não obstante, o sucesso da política de redistribuição de renda foi grande o suficiente para garantir o favoritismo de Lula na campanha presidencial de 2006. Tanto assim que o pretendente tucano à presidência, G. Alckmin, ou foneticamente, Alquimim, só encontrou a brecha do “mensalão” para encaminhar sua campanha. Já em seu primeiro discurso de candidato, reproduzido pela Folha com a costumeira complacência mediática em relação aos candidatos do dinheiro e dos interesses estabelecidos, ele tentou usar a “ética” para espremer dividendos eleitorais do alardeado escândalo: "Não tenho dúvida que temos a firmeza necessária para empunharmos a bandeira da ética, do banho de ética, da eficiência, fechando todas as torneiras, que nos permitirão avançar no projeto de desenvolvimento". Gostar de banho é bom, mas “fechando todas as torneiras” não dá nem para tomar banho de gato. Com certeza, se algum dia fizerem uma antologia das dez frases mais tolas ou ridículas da política nacional, esse brado eleitoral de Alquimim terá lugar garantido.
Não tendo ninguém explicado ao prócer tucano que “ética” não se adquire no chuveiro, ele achou que podia sair por aí dando lição de moral sem se incomodar com o fato de que a própria filha “trabalhava” na Daslu, mega-shopping dos ricos e famosos, especializado em vender aos deslumbrados cheios da grana, “griffes” caríssimas a preços do mais descarado contrabando. Não é possível supor que o papai governador e a filha dasluzette fossem ingênuos a ponto de sequer desconfiar dos crimes escandalosos contra o Tesouro Público que se cometiam diuturnamente naquele estabelecimento freqüentado pela fina flor dos banqueiros, bicheiros, congêneres e consortes. Felizmente para o Brasil, Alquimim foi derrotado e a Daslu virou caso de polícia.
Na campanha presidencial de 2010, Serra não seria tolo para agitar de novo a máscara do medo. Sobrava-lhe, como arma ofensiva, o enferrujado moralismo udenista. Na falta de melhor argumento eleitoral, resolveu empunhá-la, no discurso de lançamento oficial de sua candidatura em Salvador, no dia 12 de junho, vociferando contra os “neocorruptos” e advertindo que o Congresso não pode ser “uma arena de mensalões, compra de votos e de silêncio”. Estaria se referindo aos métodos a que recorreu a tucanagem para reformar a Constituição em 1997 e reeleger FHC?
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