Drama social fez de dom Paulo o bispo dos trabalhadores e da periferia
Realidade do país, com fluxo de imigrantes em direção ao Sudeste e violações de direitos humanos pela ditadura, foram decisivos para a atuação do religioso, que se aproxima dos 90 anos
Por: João Peres e Virginia Toledo, da Rede Brasil Atual
Dom Paulo exibe presente dos presos do presídio Tiradentes no Natal de 1971; denúncias de detenção arbitrária mobilizaram o religioso (Foto: © Douglas Mansur)
São Paulo – Quando dom Paulo Evaristo Arns assumiu o cargo de bispo auxiliar em São Paulo, em 1966, cresciam a cidade e a repressão. O processo de inchaço que criaria a maior metrópole da América do Sul estava a pleno vapor, e levaria 3 milhões de brasileiros a se deslocarem em menos de três décadas em direção à promessa da riqueza. O regime autoritário, em paralelo, recrudescia, e em 1968 foi decretado o Ato Institucional número 5, que abria espaço à institucionalização das violações de direitos humanos e das prisões arbitrárias.
“Aí, então, o profetismo de Dom Paulo foi altamente significativo não somente na arquidiocese, mas no Brasil como um todo”, avalia dom Angélico Sândalo Bernardino, chamado a São Paulo em 1974 para assumir um dos cargos de bispo auxiliar. “Foi um tempo realmente de muita vida, muita participação, isso animado de maneira significativa por Dom Paulo.”
Em 1970, quando dom Paulo foi nomeado para comandar a Arquidiocese de São Paulo, o Censo Demográfico indicava, pela primeira vez na história, que havia mais gente vivendo na zona urbana do que na rural. O então arcebispo tomou a decisão simbólica de vender o Palácio Pio XII, residência oficial, para financiar a compra de terrenos e a construção de casas na periferia.
O presídio do Carandiru, em 1966, havia sido o despertar para a necessidade de proteger os direitos humanos na selva de pedra. Foram as sucessivas denúncias de detenções arbitrárias de presos políticos que fizeram o arcebispo direcionar sua atuação. Dom Paulo passou a fazer frequentes visitas às comunidades periféricas e a articular os trabalhadores para que pudessem cumprir o papel que, acredita, lhes cabe na história, o de protagonistas.
Numa dessas missões, conheceu Santo Dias da Silva, morador da zona sul paulistana que viria a se transformar em um amigo. A Pastoral Operária, criada formalmente uma semana antes da nomeação do franciscano ao comando da arquidiocese, experimentava crescimento, e com ele abriam-se os olhos da repressão. “Dom Paulo estava nos momentos mais difíceis, mais decisivos, ligados à política, à religião, aos direitos humanos. Era a pessoa que a gente respeitava”, lembra Ana Dias, viúva do líder operário, morto em 1979 por agentes da ditadura.
Respaldo
Em 1972, a criação da Comissão Justiça e Paz pareceu a consequência natural para lidar com as violações de direitos humanos. As reuniões iniciais, na casa de dom Paulo, juntaram importantes juristas, militantes, trabalhadores e intelectuais, que buscavam formas de denunciar prisões ilegais e, com isso, garantir a sobrevivência dos detidos. “Eu não sabia o que era”, lembra Margarida Genevois, chamada ao encontro inaugural por Fábio Konder Comparato, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). “A gente fazia na cozinha, que dava para os fundos da casa, e era mais difícil de alguém ouvir ou perceber.”
“Como consequência, a gente fazia pressão em cima dos militares”, acrescenta Waldemar Rossi, fundador da Pastoral Operária e integrante do grupo inicial. Mais tarde, em 1974, o próprio viria a ser preso por conta de sua militância. Mantido em uma cela solitária durante 12 dias, e incomunicável por outros 13, só viu a situação começar a mudar quando dom Paulo perdeu a paciência, entrou na sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo, e exigiu falar com o amigo. “Vocês torturaram esse homem. Ele não consegue andar direito”, acusou.
O pior ainda estava por vir. Em outubro de 1975 foi morto o jornalista Vladimir Herzog nas celas do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), outro aparelho da repressão. Dom Paulo organizou um ato ecumênico na Catedral da Sé, marco zero de São Paulo, que reuniu milhares de pessoas e é visto como ponto simbólico do início do fim da ditadura.
“Eu acho que ele foi um visionário pelo trabalho que desenvolveu à época”, pontua Anita Wright, filha de Jaime Wright, o representante presbiteriano na celebração em homenagem a Vlado e fiel amigo do cardeal. “O fato de ter assumido uma arquidiocese do tamanho da de São Paulo demonstra a capacidade que ele tem de trabalho, liderança e carisma.”
Santo morre
“Dom Paulo saiu de casa com todos os trajes episcopais e chegou dizendo: ‘Abram a porta. É o arcebispo de São Paulo’”, recorda o padre Júlio Lancelotti sobre os fatos desenrolados quatro anos mais tarde. Em um piquete na zona sul de São Paulo, Santo Dias foi atingido pela Polícia Militar e morreu.
Dom Paulo foi até o local, mas, quando chegou, o corpo já havia sido levado ao Instituto Médico Legal (IML) – as testemunhas contam que o corpo só não desapareceu por causa da atuação imediata de Ana Dias. No IML, dom Paulo colocou a mão no ponto do corpo perfurado pela bala e mostrou aos militares que seria inútil qualquer tentativa de negar a autoria do crime.
No dia seguinte, o cardeal celebrou uma missa na Igreja da Consolação, de onde os trabalhadores partiram em passeata em direção à Catedral da Sé. “A gente pegou o caixão pior que teve. Era muito fraco”, lembra Ana. “(O caixão) não aguentava caminhar da Consolação até a Sé, mas os companheiros queriam fazer uma homenagem para o Santo. Dom Paulo encomendou outro caixão igualzinho, fez toda essa mudança, sem me deixar perceber. Só depois de muito tempo me contou isso.”
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